Um dia visto a bata e vou arrumar carros
In Público, 1 de Fevereiro 2003
Coisas simples, como pedir um empréstimo para compra de casa, pode ser para os bolseiros uma enorme aventura.
Vestem a bata branca, trabalham no mínimo sete horas por dia, e às vezes até picam ponto. Já quase todos publicaram em revistas científicas internacionais mas, se lhes perguntarem o que prevêem para o futuro, a resposta mais imediata é quase sempre uma nova candidatura a mais uma bolsa. E enquanto houver bolsa consideram-se sortudos. Porque a estabilidade profissional na ciência é ainda um sonho.
Nas paredes do Centro de Malária e outras Doenças Tropicais, em Lisboa, está um panfleto colado: “Sábado 1 – reunião de bolseiros de investigação científica”. Ana Paula Arez, 35 anos, bolseira há nove, agora na fase de pós-doutoramento na investigação da malária, e com mais de uma dezena de artigos publicados, tem consciência de que o que devia estar de facto a fazer era a coordenar projectos e a dirigir equipas. “A minha qualificação é nesse sentido. Mas posso dizer que sou privilegiada por ter uma bolsa”. Caso contrário, depois do investimento que fez, estaria desempregada. E ri-se quando conta o que correu para conseguir um empréstimo para comprar casa. “Quando dizia que era bolseira, os bancos fechavam as portas”.
Pedro Cravo, 32 anos, bolseiro há oito anos, agora também a fazer o pós-doutoramento na mesma instituição, na área da resistência da malária aos medicamentos, renunciou a um emprego com todas as regalias sociais, como investigador, na Escócia, onde fez o doutoramento, porque queria trabalhar em Portugal. “Achei que o objectivo era aprender lá fora para aplicar cá. Se o Estado acha isso importante deve agir em conformidade e respeitar-nos. Estamos sempre no fio da navalha”. E Ana Paula acrescenta, com uma gargalhada: “Um dia visto a bata e vou arrumar carros, para chamar à atenção para a nossa situação”.
Sónia Lima, 30 anos e dois filhos, bolseira há quatro anos, conta como ser bolseira é um luxo sustentado pelo emprego fixo do marido: “Com dois filhos não é fácil, mas de que outro modo poderia fazer o que gosto?”
Obrigados a cumprir as regras da instituição de acolhimento, conforme está previsto no próprio estatuto do bolseiro, Célia Tavares, física, 32 anos, bolseira do Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial, em Lisboa, conta como os bolseiros de projectos do instituto têm de picar ponto. Se ficarem aquém das 35 horas de trabalho semanal, têm um desconto no valor da bolsa. E Nuno Lopes conta como conseguir uma simples renovação de contrato de bolsa, no âmbito de um projecto, findo o ano, pode ser uma guerra de nervos: “É precisa uma autorização do ministério [da Economia], que tarda, e por isso corremos o risco de não receber no final do mês”.
Para além de se sentirem discriminados, em termos de direitos, em relação aos colegas do quadro, por vezes os bolseiros são apanhados de surpresa, em situações inesperadas, em que a perspectiva de futuro, já muito curta, é abreviada: “Tenho um contrato como bolseira de projecto, para 20 meses, co-financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e pelo Instituto de Conservação da Natureza (ICN), que vai acabar antes do tempo, porque uma das partes financiadoras, o ICN, não cumpriu com o financiamento”, conta Vera Domingues, 24 anos, bióloga, bolseira de um projecto de investigação na Unidade de Etologia e Ecologia do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa.
Vera Domingues não se lembra de nenhum colega seu de curso que não tenha recorrido à bolsa como uma forma de trabalho a seguir ao fim da licenciatura. “Estamos limitados à bolsa. Não é uma opção”, conta Joana Miranda, bolseira do Instituto de Tecnologia Química e Biológica, laboratório associado do Estado, a investigar doenças veterinárias com impacto económico, neste caso a provocada por uma carraça, a “Theileria”. No seu laboratório trabalham sete investigadores. Cinco deles são bolseiros. “Gostava de ir para uma empresa mas não vejo que haja a abertura de que se fala. Corre-se o risco do Estado investir em nós e depois termos de recorrer a instituições no estrangeiro”. E confessa que pensa duas vezes quando toca a traçar planos de futuro para a sua vida pessoal.
No fundo, trata-se de uma opção: “Tenho a clara noção de que ou sigo a carreira de investigação ou compro casa e invisto nessas coisas normais. Não temos estabilidade financeira”, conta Susana Nascimento, 24 anos, bolseira de iniciação à investigação científica do Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa. Ainda não se arrependeu, e considera uma sorte poder seguir investigação numa área onde é difícil conseguir essa proeza, como as ciências sociais: “No futuro logo se verá”