Resposta da Provedoria de Justiça à queixa ABIC sobre o regime de Dedicação Exclusiva do Estatuto do Bolseiro e actividades de cariz associativo [processo Q/2334/2018(UT6)]
COMUNICADO
Em Março de 2018 (anterior, portanto, ao novo Estatuto do Bolseiro de Investigação, EBI), a ABIC efectuou uma queixa junto da Provedoria da Justiça (PJ) acerca da negação por parte da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) dos direitos de livre associação e de participação na vida pública consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP) aos bolseiros por motivo de Dedicação Exclusiva (artigo 5º do EBI), dando voz ao coletivo de trabalhadores que exerciam atividades de investigação e de gestão de ciência ao abrigo do EBI e que nos fizeram chegar as suas preocupações. Esta queixa deu origem ao processo Q/2334/2018(UT6) que terminou agora com uma carta da PJ endereçada à ABIC.
Ainda que as questões relacionadas com a Dedicação Exclusiva careçam da contextualização de cada caso para melhor serem respondidas (podendo a resposta da PJ não esclarecer devidamente todas as situações), a pertença a órgãos de direcção/execução de Associações é uma questão recorrente, pelo que a ABIC entende que deve divulgar publicamente a clarificação efectuada pela PJ.
A queixa da ABIC focou as seguintes situações:
- a imposição de um regime de exclusividade a contratos celebrados ao abrigo do Estatuto de Bolseiro de Investigação, especialmente agravada quando este não prevê um número máximo de contratos por pessoa, permitindo uma situação de satisfação de necessidades permanentes das instituições (contrária à Recomendação da PJ n.º 2/B/2017), e vedando aos bolseiros o acesso ao constitucionalmente previsto direito ao trabalho (n.º 1 do artigo 58º da CRP) e a uma relação jurídico-laboral consagrante de plenos direitos sociolaborais;
- a requisição, por parte da FCT, de uma declaração a cada bolseiro na qual este é obrigado a declarar todas as atividades remuneradas e não remuneradas que irá assumir concomitantemente ao desenvolvimento do seu plano de atividades, o que consiste numa atividade de cariz persecutório que viola o direito à integridade pessoal e à vida privada (artigo 26º da CRP) bem como de não observância do princípio de igualdade perante a lei, já que, salvo as raras exceções legalmente previstas, em nenhuma circunstância pode a celebração de um contrato de formação ou de trabalho justificar que a entidade contratante proceda a tal escrutínio da vida do contratado;
- a imposição, por parte da FCT, para a celebração/renovação de contratos de bolsa, da condição de cessação da atividade de cariz associativo, por esta se revestir de continuidade temporal (como a integração em órgãos sociais de associações) constitui uma violação do direito à livre associação (artigo 46º), assomando-se da violação do artigo 42º (Liberdade de criação cultural) sempre que a atividade associativa a cessar é de cariz científico-cultural; do artigo 48º, relativo à participação na vida pública, já que a via associativa é, por excelência, a forma organizada de participação na vida pública e de desenvolvimento de atividade de utilidade pública; do artigo 51º, concernente à associação política e partidária, sempre a cessação de atividade associativa for de natureza político-partidária; e do artigo 50º, sempre que a cessação de atividade compreende a assunção de cargos não remunerados em instituições públicas;
- por fim, a exigência de cessação de participação em Projetos de Investigação, quer em situações em que o bolseiro é o Investigador Principal (PI) quer em que é um membro da equipa, é uma exigência desadequada pois exigir que o investigador se desassocie de Projetos para os quais pode contribuir enquanto membro, ou os quais pode gerir enquanto PI, contribuindo com os conhecimentos já adquiridos e possibilitando a criação de novos conhecimentos, é impedir o livre direito à realização científica tal como defendido na Carta Europeia dos Investigadores e Código de Conduta (https://euraxess.ec.europa.eu/sites/default/files/am509774cee_en_e4.pdf).
Na sequência desta queixa, a PJ inquiriu a FCT sobre estas práticas e informou a ABIC das seguintes acções e desenvolvimentos:
Em Janeiro de 2019, a PJ apurou junto da FCT que,
«foi promovida a alteração da minuta de declaração de exclusividade (https://www.fct.pt/apoios/bolsas/concursos/docs/minuta_dedicacao_exclusiva.docx), em termos tais que, aparentemente, viriam ao encontro do solicitado na queixa idenficado em epígrafe, com possível exceção do aspeto relavo às actividades de cariz associativo, mais concretamente no que se refere ao exercício de funções em órgãos de direção ou execução.» (sic)
respondendo assim ao ponto (ii) da queixa.
Por considerar que seria uma lacuna relevante a questão do «exercício de funções [por parte de Bolseiros] em órgãos de direção ou execução», a ABIC inquiriu a PJ se a existência de bolseiros na direcção ABIC estaria a violar os pressupostos da cláusula de exclusividade. Consideramos que tal situação seria paradoxal.
A PJ emitiu a 30 de Junho de 2020 a seguinte clarificação, enquadrando já o ponto (iii) da queixa efectuada:
«2. Realizado de imediato um primeiro conjunto de diligências junto da entidade visada, apurou-se, em termos gerais, que a exigência em questão tinha sido abolida, voltando a ser suficiente a apresentação de mera declaração de conhecimento das causas de incompatibilidade e de compromisso de exclusividade (sob compromisso de honra).
3. Entretanto, pairavam dúvidas sobre o entendimento da FCT relativamente à situação dos bolseiros que realizam atividades de cariz associativo, designadamente o desempenho de cargo ou exercício de funções em órgãos diretivos ou deliberativos de associações. Após um segundo conjunto de diligências, confirmou-se finalmente que a verificação deste tipo de atividades já não implica uma situação de imediata e automática incompatibilidade com a condição de bolseiro.
Ao invés disso e na sequência da nova redação conferida (*) ao n.o 4 ao artigo 5.o do Estatuto do Bolseiro de Investigação (**), tem a FCT entendido que, em regra, o exercício de atividade associativa não é incompatível com o regime de dedicação exclusiva.
Conclusão diversa só poderá ser afirmada, em jeito de exceção, na eventual presença de elementos suficientemente documentados que demonstrem, dadas as concretas circunstâncias de cada caso, que a atividade paralela (no que se refere ao carácter de permanência) faz perigar a exequibilidade do plano de trabalho da investigação, aspeto que costuma ser aferido com base na declaração elaborada pelo orientador e entregue pelo bolseiro.
Também se apurou, relativamente ao passado recente, que não se conhece nenhum caso no qual a questão da incompatibilidade com o exercício de cargos ou o desempenho de funções em associações tenha sido concretamente suscitada.
(*) Através do Decreto-Lei n.o 123/2019, de 28 de agosto.
(**) Com a troca, no respetivo texto legal (quanto ao requisito “sem caráter de permanência”), da conjuntiva (“e”) pela disjuntiva (“ou”) e a introdução do segmento final “não prejudicando a execução do referido programa de trabalhos”.»
Sobre a questão da participação em projectos de investigação (ponto iv da queixa), não foi emitida clarificação por parte da PJ, sendo o novo EBI omisso a este respeito.
A ABIC continuará atenta a questões de violação de direitos garantidos constitucionalmente, e continuará a luta para que todos os trabalhadores científicos possam efectivamente ser reconhecidos enquanto tal. Só a efectiva revogação do EBI poderá limitar a existência de situações que ponham em causa os direitos dos trabalhadores científicos.