Documento entregue hoje à Presidência da FCT
Ex.mo. Prof. Doutor Paulo Ferrão,
Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Os bolseiros exigem dignidade na investigação e dignidade no trabalho.
Recentemente, perante a denúncia em primeira mão por parte da ABIC da existência de um atraso significativo no concurso de bolsas individuais de 2016, a FCT confirmou que o anúncio dos resultados não cumpriria o prazo de 90 dias úteis após o fim do processo de candidaturas e que esse prazo seria estendido até ao fim de Fevereiro. Tal adiamento atrasa significativamente todo o concurso com graves consequências para a vida dos candidatos e a continuidade do trabalho nas instituições. A recorrência de situações em que ano após ano, concurso atrás de concurso, a FCT nos fustiga com atrasos, erros e deturpações, consubstancia grande desrespeito para com o maior factor de progresso da Ciência em Portugal, as pessoas, os seus investigadores, técnicos e restante pessoal de apoio à investigação. A ABIC condena veementemente este atraso. Urge tomar medidas no sentido de garantir:
- A mais célere resolução do processo de avaliação e divulgação dos resultados;
- A não utilização do expediente de recusa de candidaturas por questões administrativas sem relevância científica para reduzir artificialmente o número de candidatos;
- Um processo de tratamento dos recursos justo e eficiente que, simultaneamente não despreze as críticas ao processo e às avaliações mas que não se prolongue indefinidamente;
- A divulgação antecipada de todos os concursos de 2017 e a antecipação do concurso de bolsas individuais;
- A atribuição na totalidade das bolsas previstas, ou seja, caso um candidato desista antes da assinatura do contrato, a bolsa é atribuída ao seguinte da seriação final.
A actual conjuntura agrava a situação. Esperamos cada vez mais por cada vez menos dinheiro. O financiamento em ciência e investigação não permite condições de vida dignas, estabilidade no trabalho e na vida familiar para os investigadores em início de carreira, onde se encontram grande parte dos bolseiros de investigação e cujas bolsas não são actualizadas positivamente desde 2002. Não é aceitável que 2017 se confirme como o 15.º ano consecutivo sem actualizar os valores das bolsas. À FCT exige-se uma posição clara de valorização dos seus investigadores. Em particular:
- O aumento das remunerações mensais dos investigadores contratados pela FCT;
- A reposição dos subsídios retirados durante o governo anterior, como os referentes ao apoio à apresentação de trabalhos científicos e o apoio à formação complementar;
- A entrega directamente ao bolseiro dos valores referentes às propinas e outros custos administrativos, assim combatendo o aproveitamento das universidades que recebem da FCT e depois ainda vão cobrar novamente aos bolseiros.
Note-se que os bolseiros de investigação vivem e trabalham sob grande precariedade. Nos últimos anos, os cortes e outros constrangimentos, orçamentais e não só, vieram agravar as condições de vida e a pressão no trabalho de todos os trabalhadores científicos e, em particular, destes profissionais da ciência com vínculo precário. A dinâmica ondulatória do financiamento ao sabor dos concursos (de projectos, de bolsas, etc…) intermitentes, além das consequências perturbadoras na organização e tarefas das unidades de investigação, é particularmente pesada para os elos mais frágeis do Sistema Científico, os bolseiros e candidatos.
Integração no Regime Geral da Segurança Social
Num momento em que o discurso político se centra em chavões como “dignificação” e “co-responsabilização”, a ABIC também requere a prática desses conceitos, nomeadamente no que a uma segurança social justa diz respeito. O Seguro Social Voluntário, ao qual os bolseiros têm acesso, não permite que em caso de doença se viva dignamente.
A ABIC defende que os bolseiros de investigação científica, deveriam estar abrangidos pelo regime obrigatório de Segurança Social, única garantia de protecção social destes investigadores. Contribuir para o regime de segurança social viria a garantir protecção na doença, no desemprego e retiraria da FCT a necessidade de pagar as licenças de parentalidade e os subsídios relativos à incapacidade temporária para o trabalho de investigadoras grávidas, por exemplo.
Por fim, destaca-se que a ABIC tem recebido relatos trágicos de investigadores, com doenças prolongadas, a receberem €290/mensais.
Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI)
A precariedade na ciência está intrinsecamente ligada ao Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI). Este é o instrumento legal que, na prática, transforma o que seriam vínculos permanentes em bolsas, com toda a precariedade que lhe está associada. É mais barato ter um trabalhador com bolsa do que fazer-lhe um contrato de trabalho. É urgente revogar o EBI para que haja dignidade na Ciência. Enquanto ele existir, haverá uma porta aberta para a precariedade porque é o instrumento usado por todas a instituições para tornar reféns e explorar os investigadores mais jovens, assegurando assim todas as tarefas, relacionadas ou não com a investigação científica. A FCT não se pode manter conivente com as instituições dando provimento legal às malfeitorias que permanecerão, enquanto o EBI se mantiver.
Decreto-Lei 57/2016 – Contratação de doutorados
Apesar do DL57/2016 prever a contratação de alguns doutorados, em caso de financiamento reduzido, a figura do investigador pós-doutoramento prevalecerá sobre a contratação. Nesse sentido, discutir a contratação efectiva de doutorados é, mais uma vez, assumir a revogação do EBI.
Ainda assim, o referido Decreto-Lei levanta muitas dúvidas por parte da comunidade científica, não só porque o rendimento mensal líquido será inferior ao da bolsa, mas porque estipula (sucessivos) contratos a termo, dependentes de financiamento. A integração dos trabalhadores científicos na carreira de investigação tem de ser assegurada.
Nesta lógica da “co-responsabilização” das instituições, a ABIC vem exigir uma minuta com as regras específicas para os concursos que as instituições têm de respeitar para que nenhum bolseiro que tenha direito a contrato fique sem ele. É também importante que a FCT acompanhe a execução do diploma e preste esclarecimentos continuos à comunidade científica.
Não obstante, a ABIC considera positivo o reconhecimento, por parte do Ministério da Ciância, Tecnologia e Ensino Superior, da situação precária em que os investigadores desenvolvem o seu trabalho em Portugal, tendo criado legislação que enquadre a sua contratação. Podemos mesmo assegurar que a maior mais-valia deste decreto-lei é assegurar uma segurança social condigna que confere aos investigadores o valor mais básico de se ser cidadão e ter uma profissão tão digna como as outras todas. No entanto a ABIC não pode deixar de apontar:
- a insuficiência do DL por apenas contemplar os investigadores doutorados; existem investigadores a desempenhar tarefas permanentes no sistema nacional científico e tecnológico que não têm doutoramento e são tão necessários como os outros;
- o DL introduz entropia no sistema por criar uma vesícula de investigadores doutorados contratados fora da carreira que já existe. A ABIC gostaria de receber explicações para este facto. Serão estes investigadores necessários ao sistema, mas não tão necessários para lhes ser conferido um vínculo como aos outros?
Em suma, o DL é insuficiente por contemplar contratos de natureza temporária e com uma grande desvalorização salarial.
A ABIC continuará sempre a lutar pela integração na carreira de todos aqueles que fazem investigação no nosso país, não só pela valorização do trabalho dos investigadores, mas também por considerar que garantir a dignidade e os direitos dos trabalhadores é garantir a excelência e integridade da ciência que se produz, enquanto pilar fundamental do desenvolvimento e progresso da sociedade.
Com os melhores cumprimentos,
A Direção da ABIC.
Lisboa, 23 de novembro de 2016