No passado dia 13 de Fevereiro de 2019, respondendo positivamente ao convite da entidade gestora do PO CH – Programa Operacional Capital Humano / Portugal 2020, a ABIC esteve presente na sessão de apresentação dos resultados da Avaliação sobre o Contributo dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI) para a Formação Avançada (informações adicionais aqui)
Em representação da ABIC, o colega Paulo Batista (bolseiro de investigação na Universidade de Aveiro), participou na mesa redonda de discussão dos resultados da avaliação. A intervenção do colega teve por base o texto que aqui se reproduz.
O reconhecimento, neste relatório, do contributo dos trabalhadores atuais do Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), formados ao abrigo de programas de formação avançada financiados por fundos europeus, não nos deve surpreender. Com efeito, a evolução positiva dos indicadores nacionais de referência – com um papel de relevo dado à produção científica – não decorre apenas dos esforços dos agora doutorados e pós-doutorados, mas, tantas e tantas vezes, dos esforços realizados enquanto “doutorandos” e “pós-doutorandos”!
De facto, é muitas vezes ao longo do designado “período de formação avançada” – que tantas vezes se prolonga bem para lá de metade da vida ativa expectável – que são realizados muitos dos contributos efetivos para o SCTN!
Basta visitarmos muitos gabinetes de investigação e laboratórios, para encontrarmos um número significativo de bolseiros de doutoramento que asseguram desde a condução do trabalho técnico-científico em projetos de investigação das mais variadas tipologias (FCT, europeus, parcerias, transferências de tecnologia), o apoio à gestão das equipas de investigação e terminando na execução de muitas tarefas de docência (quando não assegurando o funcionamento de disciplinas na sua totalidade!).
Portanto, cabe salientar que este relatório parece efetivamente omisso na contabilização destes contributos, tão ou mais fulcrais, para o SCTN, que estes sim explicam grande parte do “robustecimento das instituições nucleares do SCTN (Instituições de Ensino Superior, centros de I&D, etc.), permitindo mitigar défices quantitativos e qualitativos que caracterizavam a sua base de recursos humanos”.
Ora, de outra forma, num sistema em que as entradas na carreira de investigação estão praticamente congeladas, onde as posições mais técnicas / de apoio à atividade de investigação são inexistentes, e onde, no global (ou seja incluindo as posições na carreira de docência), os recursos humanos efetivos (os trabalhadores, reconhecidos como tal) está estagnado ou mesmo a diminuir, como poderíamos explicar tal salto qualitativo e quantitativo que tantos indicadores e tantos relatórios demonstram direta e indiretamente?
Aliás, este relatório, ainda que timidamente, assume que o “recurso a bolsas como forma de enquadrar o desempenho profissional de investigadores (investigadores-bolseiros) representa um fator altamente condicionador da estabilidade das condições profissionais, muito marcadas pela precariedade e ausência de perspetivas de futuro.”
Aliando o não reconhecimento das atividades produtivas realizadas por doutorandos e pós-doutorandos, com a precariedade e ausência de perspetivas de futuro de doutorados e pós-doutorados, é óbvio que chegamos a um momento chave do SCTN: ou efetivamente concretizamos as expectativas de reconhecimento e valorização dos seus principais ativos – os seus trabalhadores – ou esta contínua desvalorização profissional, assente num sistema de bolsas que nega coisas tão básicas como a proteção social na saúde (e no desemprego), levará a uma desvalorização efetiva do trabalho científico e do potencial que este cria para a transformação económica e social do país – afinal, são estes os objetivos últimos dos fundos europeus.
Perante este cenário, não surpreende que a nota negativa deste relatório, se refira a uma aparentemente reduzida absorção do trabalho de doutorandos, pós-doutorandos, doutorados e pós-doutorados pelas empresas. Tal nota negativa só poderá ser explicada pelo não reconhecimento de uma parte significativa do trabalho desenvolvido pelos bolseiros de investigação no geral, incluindo obviamente o trabalho de doutorandos e pós-doutorandos. De facto, o estatuto do bolseiro de investigação serve de subterfúgios para classificar como “formativas” o contributo efetivo destes trabalhadores em muitas atividades permanentes destas instituições: dos contributos nos projetos de investigação, na gestão de ciência e na docência, terminando com os muitos exemplos de participação direta e indireta nas atividades de transferência de tecnologia.
Note-se que o não reconhecimento generalizado destas atividades é altamente incentivado pelas políticas de ciência, incluindo os mecanismos de transferência de tecnologia: as pressões para a geração de receitas próprias incentiva a exploração de trabalho de profissionais altamente especializados e produtivos pelas instituições “formativas”. Fazendo uso da figura do bolseiro e alegando formação ad-eternum, os recursos que deveriam ser alocados à remuneração condigna dos trabalhadores que asseguram muitas destas atividades produtivas (com realce para a “venda” de conhecimento às empresas), são canalizados para o financiamento geral das instituições do SCTN. Este esquema incentiva ainda as empresas a recorrer a uma espécie de outsourcing da investigação e desenvolvimento: a empresa contrata a instituição do SCTN, que por sua vez associa como recursos a esses projetos os mais diversos bolseiros, deixando no seu brio profissional a execução de grande parte das tarefas técnico científicas. Desta forma, o procedimento torna-se altamente vantajoso para duas das três partes envolvidas, sendo, obviamente, o trabalhador aquele que sai a perder.
A falta de reconhecimento dos bolseiros enquanto trabalhadores, aliada à desculpa de que as suas atividades são mera “formação”, tem levado ao alastramento da exploração e precariedade, começando já hoje a grassar dentro das próprias empresas. De facto, começamos a assistir a profissionais altamente especializados, que acrescentam valor às atividades produtivas e aos produtos de muitas empresas, a serem “acolhidos” nas instalações das empresas com todos os deveres e mais alguns dos trabalhadores, mas sem os direitos respectivos. Neste cenário a “falta de evidências de que estejam asseguradas as condições de suporte a essa transição de paradigma – um direcionamento mais expressivo da produção de ativos com FA para mercados não académicos” é uma consequência óbvia dos erros sucessivos de política de ciência, a qual tem vindo a apostar na desvalorização do fator trabalho, partindo da premissa que os incentivos para as empresas acolherem mais cientistas é torná-los tão desvalorizados que já não são cientistas, são estudantes – uma vida de trabalho inteira! Afinal, como podemos encontrar cientistas (contratados) nas empresas se estamos a dizer-lhes que podem contar com “estudantes” a vida inteira a “substituí-los”?!
Todos parecem esquecer que a ciência faz-se com cientistas, e desvalorizar (quase eliminar?) essa profissão transformando-a num “processo de aprendizagem de uma vida”, irá mais tarde ou mais cedo afastar muitos bons cientistas e diminuir o potencial da produção de conhecimento aplicado na economia.
Como pode a ciência e tecnologia, seja nas empresas ou nas instituições do SCTN atrair profissionais quando um doutorando, um jovem de 25 anos, no início de carreira, apenas conseguirá um “subsídio mensal de manutenção”, que equivale a pouquíssimo mais que um qualquer outro trabalho remunerado com o salário mínimo nacional? Para mais, quando esse subsídio mensal nem sequer oferece protecção social (na doença, nos acidentes de trabalho e no desemprego!) e pode prolongar-se por um longo período de “formação” permanente?
Por fim, em jeito de alerta para os nossos governantes, para as entidades europeias e para as entidades gestoras destes fundos: caberá, com certeza, ter em conta que as políticas públicas devem ser coerentes entre si. Subscrever documentos como a Carta Europeia do Investigador, que é bem clara sobre a necessidade de garantir que toda a atividade científica deve ser realizada com base num contrato de trabalho, mas legislar, promover e expandir mecanismos que preconizam exatamente o contrário – como parece ser a aposta na expansão das bolsas de investigação como substitutas de contratos de trabalho nas empresas – são práticas que não só atentam os direitos básicos dos trabalhadores como desprestigiam o exercício da política. Afinal, esta não deveria servir para reconhecer e valorizar os cidadãos e as atividades que estes realizam, quando tantos impactos positivos têm na sociedade?