A Direção da ABIC no exercício do seu direito de resposta e de retificação, ao abrigo do artigo n.º 24 da Lei n.º 2/99, solicitou ao jornal Expresso a publicação de um artigo que visa retificar e esclarecer mensagens lesivas contidas em textos de opinião, publicados por esse jornal nas últimas semanas, da autoria de João Vieira Pereira (29/07/2017) e de João Gabriel Silva (05/08/2017). Consideramos que é nosso direito, enquanto associação que representa os investigadores lesados pelas imagens deturpadas propagadas nesses textos, fazer uso do direito de resposta no mesmo órgão de comunicação social em que essas mensagens foram divulgadas. Infelizmente o Expresso negou à ABIC o direito de resposta e não publicou o artigo que esclarecia questões fundamentais no debate sobre o emprego científico. Para que a nossa posição não seja silenciada, publicamos abaixo a nossa resposta, apelando à ampla divulgação do texto.
Resposta aos artigos de opinião de João Vieira Pereira de 29/07/2017, e de João Gabriel Silva de 05/08/2017, Expresso.
A profusão de vozes que, sob diversas formas, têm vindo a público tomar posição contra a iniciativa de estímulo ao emprego científico para contratação de doutorados obrigam a Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) a exercer, em representação dos investigadores bolseiros, o seu direito de resposta, não apenas zelando pela boa imagem dos investigadores, mas também para trazer ao leitor informações pertinentes sobre as medidas governativas que visam a integração destes trabalhadores num modelo de relação laboral digno. São essas medidas o Decreto-Lei n.º 57/2016 e Lei n.º 57/2017 (DL57+L57) e o Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP).
A ABIC considera aviltantes os argumentos que neste jornal vieram a público, resumidos que estão nos textos de opinião de João Vieira Pereira, jornalista do Expresso, e do Reitor da Universidade de Coimbra, João Gabriel Silva, naquele mesmo jornal (nas edições de 29/07/2017 e de 05/08/2017, respetivamente). Vimos, por isso, desmentir o que de mais relevante, e falacioso, neles encontramos:
1. Começamos pelo argumento de que a integração dos investigadores bolseiros irá engordar o Estado, fazendo a sua integração de modo cego. Ora, o DL57+L57 estabelece como seu objetivo o estímulo à abertura de oportunidades de emprego e o desenvolvimento de percursos profissionais de doutorados, juntamente com a promoção do rejuvenescimento dos recursos humanos das entidades que integram o Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN). É, para nós, importante relembrar que os trabalhadores científicos em Portugal exercem as suas funções maioritariamente ao abrigo do Estatuto de Bolseiro de Investigação (EBI), que possibilita o recrutamento de investigadores através de um regime de bolsas não de contratos de trabalho. Existem bolsas para as mais diversas fases da carreira de um investigador: de iniciação científica, de técnico de investigação, bolsas de investigação (em projetos, para titulares de diferentes graus académicos), bolsas de doutoramento, bolsas de pós-doutoramento, entre várias outras. O EBI é um instrumento que mantém de bolsa em bolsa a maioria dos investigadores e, não raras vezes, ao longo de 10, 15 e 20 anos das suas vidas. É importante esclarecer que o estímulo ao emprego científico, estabelecido pelo DL57+L57, visa apenas a abertura de concursos para investigadores doutorados que se encontram com bolsas há mais de três anos após o doutoramento. Deste modo, o DL57+L57 exclui todos os investigadores não doutorados, cujas atividades são igualmente importantes para as instituições científicas. Afirmar que se trata de uma integração cega de todos os investigadores é, pois, uma clara deturpação dos factos.
2. Isto conduz-nos ao argumento de João Vieira Pereira de que se está a contratar pessoas que não são necessárias. Na verdade, as atividades de investigação, das tarefas mais simples às mais complexas no seu conteúdo funcional, são atividades de caráter permanente nas instituições, tal como o são as atividades de tipo administrativo, de gestão de espaços, de limpeza, etc.. Nas instituições que compõem o SCTN, que têm a investigação como núcleo central da sua atividade, é simplesmente anedótico não considerar os investigadores como necessidades permanentes. No fundo, os investigadores estão para a ciência como João Vieira Pereira e os seus colegas estão para o Expresso. Não haveria jornal sem eles.
3. Quanto ao problema de discriminação das instituições de direito público, referido pelo Prof. Doutor João Gabriel Silva, Reitor da Universidade de Coimbra, temos de esclarecer que o DL57+L57 se foca na regularização da situação laboral de investigadores bolseiros que já fizeram um longo percurso sem nunca lhes ter sido concedido direito a um contrato de trabalho, mas apenas e só às mais variadas formas de bolsas. Estes investigadores auferem um subsídio de manutenção mensal que varia consoante o grau académico (entre os 385 euros e os 1495 euros) apenas 12 meses por ano. As bolsas podem não ser renovadas e o bolseiro está sempre numa situação de fragilidade em relação à instituição contratante. Acresce ainda que estão excluídos do regime geral de segurança social e, como tal, de direitos tão básicos como um subsídio de desemprego, ou subsídio integral de doença (natural ou até por acidente de trabalho). Enfim, estão excluídos da proteção social que deveria assistir a todos os trabalhadores. Seria da maior importância que, as vozes que reclamam sobre a discriminação das instituições de direito público relativamente às instituições de direito privado, corrigissem a discriminação laboral que existe no interior das unidades de investigação. É, também, urgente que os Srs. Reitores repensem a sua resistência face às medidas de estímulo ao emprego, formal e digno, de investigadores que fazem das universidades portuguesas instituições de excelência no campo da investigação científica.
4. Cego e discriminatório tem sido o uso abusivo da figura do bolseiro para contratar pessoas que estão todos os dias nas instituições e das quais estas dependem diretamente para a obtenção de boa parte dos financiamentos que permitem o seu funcionamento. É essa lógica de funcionamento que tem servido para justificar a perpetuação de investigadores em regime de bolsas. Mas também convém dizer ao leitor — e a João Vieira Pereira, já que afirma não saber para que são necessários os investigadores ou o que vão fazer —, o facto de, terminado um projeto, ser necessário conceber um novo. Importa salientar que entre um projeto e o outro, as entidades desresponsabilizam-se completamente por estes trabalhadores – cessam as suas bolsas, os investigadores ficam sem qualquer rendimento, e sem qualquer proteção no desemprego. Acontece assim sucessivas vezes ao longo do percurso do investigador. Nesta fase da sua vida onde não têm rendimento, os investigadores voltam a conceber, redigir e submeter novos projetos. Caso o financiamento seja atribuído (após exigentes e morosos processos de avaliação), a Universidade fica com 20% do financiamento angariado pelo investigador. É, portanto, irónico que sejam os responsáveis destas instituições a não reconhecer o trabalho dos seus investigadores como uma necessidade permanente. A injustiça de todo este processo é, como veem, profunda e o elo mais fraco é o investigador.
5. O argumento de que «não é de professores, doutorados e investigadores que o Estado tem falta, mas sim de médicos, enfermeiros, polícias, bombeiros» sugere a ignorância em absoluto acerca do processo de produção de conhecimento científico e tecnológico e os meios da sua transferência para as mais diversas esferas da vida social e económica. Imagine João Vieira Pereira, e o leitor, como seria a medicina sem raios-X, ecografias, ressonâncias magnéticas, vacinas, antibióticos e estudos de epidemiologia. É sinónimo de mor ignorância considerar que a ciência se faz só e exclusivamente dentro da academia e que não tem tradução prática e tangível para benefício da sociedade. A ciência também se faz nas empresas, com financiamento público, quer através de bolsas de doutoramento em empresas, entre outras, quer através de outros tipos de apoios à Investigação e Desenvolvimento que, pelos vistos, alguns comentadores preferem ignorar.
6. Sobre a sustentabilidade financeira das universidades, pegando no exemplo da Universidade de Coimbra (UC), mostra o Relatório de Gestão e Contas de 2016 que daqui a 6 anos esta terá menos 300 docentes e investigadores, pois estes aposentar-se-ão. Mas é da mesma ordem de grandeza o número de investigadores que deverão agora ser contratados a termo certo ao abrigo do DL57+L57 e que daqui a 6 anos poderão, de facto, entrar na carreira. Esta relação torna evidente que está apenas em causa a pouca vontade de cimentar um caminho lógico e digno para aqueles que atualmente se dedicam à investigação e/ou à docência. Além disso, importa igualmente compreender a sustentabilidade financeira numa lógica mais abrangente. As Universidades têm agitado números para todos os gostos, procurando demonstrar como esta solução será dispendiosa. No entanto, se pensarmos na lógica das contas do Estado rapidamente percebemos que esta é apenas uma parte da história. Grosso modo, o excedente que será suportado pelas Universidades corresponderá a 2 componentes: o pagamento da Segurança Social e o pagamento do subsídio de alimentação, de férias e natal. Ora, a primeira componente dessa despesa é igualmente uma receita do próprio Estado e, portanto, o seu efeito em termos de gastos públicos é nulo. A segunda componente corresponde basicamente a um direito que passa a ser atribuído ao investigador por trabalhar (coisa que já o faz, mas sem que lhe seja reconhecido o direito). Assim, queiram o Sr. Reitor da UC e Reitores de outras Universidades exigir mais financiamento para o Ensino Superior e Ciência, em contrapartida pelo pagamento de contribuições à Segurança Social e aumento dos seus encargos, e contarão com o apoio da ABIC na primeira fila. O que não queiram é perpetuar uma situação de injustiça com a desculpa de aumentos de custos que apenas resultam da reposição de uma situação imoral, que está ainda em vigor.
Se até aqui procurámos refutar as falácias publicadas nos últimos dias, não podemos terminar sem reconhecer que a discussão é muito mais profunda do que os argumentos apresentados pelos mais variados comentadores. A existência de milhares de bolseiros a exercer atividades de investigação com este vínculo jurídico tem contribuído para a desvalorização da profissão de investigador através da pressão exercida pelos baixos salários por comparação a contratos de trabalho, celebrados ao abrigo do Estatuto da Carreira de Investigador Científico. Assim, os custos desta realidade não lesam apenas os investigadores por via da precariedade que os condiciona. Esta realidade, que nos deverá envergonhar a todos, coletivamente, coloca em causa o desenvolvimento da atividade científica em Portugal e é, em última instância, fonte de atraso social, económico e cultural. Parafraseando Einstein, e em defesa da ciência portuguesa, vem a ABIC lembrar que não podemos resolver problemas usando da mesma estrutura de pensamento que usámos para os criar.
A Direção da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica
Lisboa, 10 de Agosto de 2017