A Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) reuniu, no dia 6 de Agosto de 2024, com o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), representado pelo ministro Fernando Alexandre, e pela secretária de estado da Ciência, Ana Paiva. O MECI pretendia discutir a proposta do governo para que os bolseiros possam dar aulas no ensino básico e secundário, tendo a ABIC acrescentado outros assuntos à ordem de trabalhos da reunião, nomeadamente o fim das taxas de entrega de tese, a medida do anterior governo da devolução do valor da propina através do IRS que não abrange os bolseiros, questões relacionadas com o Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI), a proposta da FCT para a 7.ª edição do Concurso Estímulo ao Emprego Científico (CEEC), entre outros temas que afectam a vida e o trabalho dos investigadores.
Valorizamos desde logo que este ministério, reunido pela primeira vez com a ABIC, tenha afirmado que a precariedade generalizada na ciência é inaceitável e se tenha distanciado de posições que consideravam a precariedade como uma característica favorável ou até indispensável ao desenvolvimento do trabalho científico.
A ABIC sublinhou que a maioria das questões que prejudicam a vida e trabalho dos bolseiros só pode ser resolvida com o fim do EBI e com a substituição de todas as bolsas por contratos de trabalho. O MECI afirmou que o projecto de novo Estatuto da Carreira de Investigação Científica (ECIC), e seu o artigo 29.º, que se refere à contratação de investigadores não-doutorados, abre a porta a essa nova realidade no futuro, considerando no entanto que o EBI deve poder continuar a ser aplicado a bolsas de curta duração. Em relação à situação específica dos investigadores doutorados, o MECI admitiu ser urgente acabar com os vínculos de bolsa, sem no entanto se comprometer com prazos para tal.
Sobre os assuntos específicos abordados na reunião:
- O MECI apresentou uma proposta de alteração ao EBI para que este contemple como excepção ao regime de dedicação exclusiva até 6 horas de carga lectiva semanal no ensino básico e secundário, para os bolseiros de investigação que pretendam aderir voluntariamente ao programa que visa colmatar a falta de professores na escola pública. A ABIC manifestou a sua preocupação e desacordo com a medida porque recorrer a investigadores com bolsa para estas funções agrava a sua presente situação de precariedade laboral e desvia-os das suas actividades de investigação, comprometendo o desenvolvimento do seu trabalho científico. Esta medida não tem em conta, e antes agrava, a precariedade e instabilidade que marcam a vida destes investigadores, a quem as 6 horas de aulas semanais são apresentadas como suposta forma de colmatar a fragilidade da sua situação financeira. Se, por um lado, o EBI exige um regime que reforça a importância da dedicação exclusiva do investigador ao plano de trabalhos subjacente ao projecto de bolsa, por outro lado, permite a sua excepção como forma de resolução provisória do problema da falta de docentes na escola pública e tendo por base a frágil situação laboral e financeira a que os investigadores com bolsa estão sujeitos. A ABIC considera que, embora a possibilidade de dar aulas a título pontual nestas entidades possa – num contexto que fosse o de direitos e protecção laboral – ser do interesse das várias partes envolvidas, num contexto de precariedade como o actual, significaria pelo contrário ter o próprio estado a usar-se da precariedade destes investigadores para resolver um problema que deve ser abordado de uma forma estrutural. Acrescentamos ademais que esta proposta tem subjacente a visão deturpada de que os bolseiros de investigação não são trabalhadores (equiparando-se, nas propostas do governo sobre a falta de professores, a professores reformados ou desempregados) pelo que teriam a disponibilidade horária e mental para poder ter uma carga lectiva equivalente a mais de metade de um horário completo de um docente de carreira.
- A ABIC denunciou o facto de muitos bolseiros darem aulas nas instituições de ensino superior (IES) sem remuneração e que seria importante integrar no EBI a obrigatoriedade de pagamento desse serviço docente. Caso contrário, poder-se-ia dar a situação de estar salvaguardado no estatuto o pagamento para os que darão aulas no ensino básico e secundário ao abrigo deste novo programa e não para os que, até aqui, têm dado aulas no ensino superior. O MECI comprometeu-se a pensar uma formulação para garantir este princípio, concordando de forma inequívoca com a necessidade de pagamento do serviço docente prestado por bolseiros, em qualquer contexto.
- A ABIC colocou ainda o problema das dificuldades na adesão ao Seguro Social Voluntário (SSV), por não ser automático, ser voluntário, e exigir uma série de burocracias, e o MECI ficou de considerar se poderia haver um procedimento de adesão automática, para que estivesse garantido o mínimo de protecção social para todos os bolseiros e se ultrapassarem os obstáculos burocráticos que actualmente se verificam. A ABIC sublinhou que, de qualquer modo, este regime não serve os bolseiros, não garante a sua protecção social, e prejudica a sua carreira contributiva, pelo que é urgente encontrar uma forma de resolver esta situação.
- Quanto ao facto de as licenças de parentalidade não serem garantidas aos bolseiros de projectos, ficando dependentes do financiamento disponível, a ABIC sublinhou que essa situação deve ser esclarecida e resolvida para que seja justa e igual para todos os bolseiros e restantes trabalhadores científicos. O MECI respondeu que com a proposta de novo ECIC se considera que os investigadores integrados em projectos, sejam doutorados ou não, devem trabalhar ao abrigo de um contrato de trabalho, pelo que as licenças de parentalidade passariam a estar previstas ao abrigo da lei. Esta posição é importante por deixar evidente que o caminho deve ser o da contratação de investigadores, independentemente da fase de formação, não sendo aceitável que os investigadores de projectos individuais sejam sujeitos ao estatuto de bolseiro quando é reconhecida a relação laboral aos que fazem investigação no seio de um projecto, mesmo estando inscritos no ciclo de doutoramento.
- O MECI revelou preocupações quanto a resolver o problema das taxas de entrega de tese, tendo em conta a autonomia das universidades. No entanto, considerou o pagamento desses valores inadequado e comprometeu-se a estudar o assunto, procurando avaliar o impacto orçamental e de que forma o fim desta taxa poderia ser concretizado. A ABIC não pode aceitar que, após uma extensa, duradoura e alargada discussão pública acerca deste assunto – obrigando mesmo a que fosse discutido em plenário da Assembleia da República, depois da recolha de mais de 8000 assinaturas –, e após várias promessas de anteriores governos com vista ao seu fim, se volte atrás, com promessas de estudos e avaliações, num processo que deveria estar finalizado e em vigor.
- Relativamente a questões como o tempo de espera entre a entrega e a defesa da tese de doutoramento, ou das disparidades entre as normas das instituições no que toca ao destino dado ao excedente entre a transferência da FCT para o pagamento das propinas e o seu valor, o MECI considerou que estas questões dizem respeito à autonomia das IES e ao seu funcionamento, e que não podia comprometer-se com uma solução.
- A ABIC questionou também o MECI acerca das alterações à 7º edição do CEEC, em particular acerca da redução do período de financiamento de 6 para 3 anos, considerando a ABIC que esta alteração vai agravar as condições de trabalho destes investigadores. O MECI respondeu que o objectivo desta redução é não prolongar o tempo em que um investigador doutorado se encontra numa situação de precariedade, antecipando a entrada na carreira. No entanto, a preocupação da ABIC mantém-se. Por um lado, a taxa de aprovação de contratos do CEEC, resultado do baixo número de posições para o grande número de candidaturas, e os números manifestamente insuficientes para vinculação na carreira de investigação que foram apresentados com o programa FCT Tenure, não têm em conta o elevado grau de precariedade no sector. Por outro lado, da parte das instituições continua a faltar um plano para integrar nos quadros os investigadores com vínculos precários que neste momento desenvolvem a sua investigação em Portugal. A incapacidade de integrar investigadores doutorados na carreira, combinada com a redução das categorias disponíveis no próximo CEEC apenas para Investigador Júnior e Investigador Auxiliar (retirando desta última a limitação de candidatura aos doutorados há mais de 12 anos), resultará num afunilamento das candidaturas numa única categoria, agravando ainda mais as já baixas taxas de aprovação e prejudicando gravemente as perspectivas de trabalho dos investigadores. Este conjunto de decisões, aliado às tentativas de financiar empresas e outras instituições não académicas através da FCT – para que estas acolham investigadores em doutoramento e, agora também, investigadores doutorados –, poderá representar uma redução significativa do número de investigadores a trabalhar em instituições e centros de investigação públicos. Se, por princípio, a ABIC não entende como problema que haja investigadores a desenvolver a sua actividade em instituições não académicas, esse objectivo não pode ser concretizado em detrimento do investimento público na ciência.
- O MECI ficou de considerar a futura aplicação da medida de devolução da propina através do IRS (Decreto-Lei n.º134/2023) para os bolseiros de investigação, concordando com a injustiça da situação para estes investigadores que escolheram trabalhar em Portugal e que, pelo facto de não serem considerados trabalhadores e não terem um contrato de trabalho, não são abrangidos pela medida.
- O MECI comprometeu-se a esclarecer a situação dos doutorandos do Instituto Universitário Europeu que não são ressarcidos pela FCT dos valores respeitantes ao Seguro Social Voluntário no quarto ano da sua bolsa.
- O MECI garantiu que estão a ser feitos esforços para melhorar o funcionamento da FCT no que toca aos vários procedimentos em torno dos concursos e considerou inaceitável que se esperem vários meses entre a assinatura do contrato e a transferência das remunerações para os bolseiros.
A abertura que reconhecemos da parte do MECI para encontrar soluções que resolvam os problemas dos investigadores com vínculo de bolsa, nomeadamente no que respeita às questões discutidas nesta reunião, não podem ser entendidas como ponto de chegada no caminho de mobilização dos bolseiros e reforço da sua organização.
Preocupa-nos o argumento da autonomia das IES como forma de justificar a não regulação pelo MECI de procedimentos diferenciados e muitas vezes arbitrários entre instituições.
Esta aparente abertura, que resulta da luta dos bolseiros, permite a continuação das negociações, mas ainda não garante o fim da precariedade, através da necessária abolição do EBI, medida que é um passo fundamental para desenvolver e valorizar o sistema científico e tecnológico nacional e garantir os devidos direitos a todos os trabalhadores científicos.