O retrato de quatro jovens na precariedade
In Público, 10 de Janeiro de 2010
Durante anos investiram na formação. E esperaram pelos resultados. Em vão: Inês, Ana (nome fictício) Vasco e João continuam à espera da sua oportunidade.
Inês passou das artes para um call center
Quando era pequena já só queria dançar, representar, pintar… Os pais pensavam que o gosto de Inês Carvalho pelas artes seria momentâneo. Uma coisa da idade. Mas esta “brincadeira de crianças” sempre foi levada a sério por Inês, que fez todo o seu percurso académico neste sentido. Com este objectivo. Tem 21 anos e acabou no passado Verão a licenciatura em Teatro, ramo de Produção, na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa. Se pudesse, passaria o resto da vida a “organizar toda a parte logística de montar um espectáculo cénico” – seja teatro, cinema ou televisão.
“Sempre fui boa aluna e nunca chumbei”, contou ao PÚBLICO, em jeito de justificação, antes de deixar cair que “por acto de desespero e porque não aguentava mais estar deprimida em casa” está a fazer formação para trabalhar num call center. Nunca imaginou. Dos bastidores dos espectáculos passou para a fidelização de clientes numa empresa de telecomunicações. “Durante o curso sempre fiz várias produções e trabalhei, sem ganhar, em projectos e espectáculos de professores. Via isso como formação e acreditava que, depois da licenciatura, poderia continuar a trabalhar com eles já com ordenado.” Mas não continuou.
Mal o curso acabou, Inês percebeu que o mercado não tinha espaço para si a não ser a preço quase zero. “É uma grande frustração. Quando o curso acabou as oportunidades desapareceram todas”, lamenta. No último ano ainda estagiou numa produtora que faz telenovelas e chegou a ser chamada para um trabalho pontual. “Mais tarde convidaram-me para ficar a recibos verdes, sem horários e a trabalhar mais de 12 horas por dia. Tive de dizer que não, para poder acabar os projectos de final de curso e se tivesse ficado seria mesmo por gosto. O que pagavam não dava para fazer uma vida fora de casa dos pais.”
Inês rejeita que a sua geração seja vista como perdida. E promete “correr atrás das coisas”. Mas admite: “O facto de gostarmos de uma coisa faz-nos aceitar situações de precariedade e eu e os meus colegas estamos todos assim. Já enviei mais de 20 currículos e, quando me respondem, é sempre para dizer que as coisas estão complicadas. Tive de abrir o leque. Também já estive numa loja a ser explorada e onde nem as horas extraordinárias pagavam.”
Decidiu apostar em formação, nomeadamente na área da fotografia e maquilhagem. “E percebi que a formação só ajuda a ocupar o tempo mas não me vai trazer trabalho. A minha auto-estima vai diminuindo e o meu medo é que perca a prática. Neste momento é tudo decidido por sorte e por ter amigos, mas eu vou continuar a procurar até me sentir profissionalmente realizada e porque acredito que um dia vai haver lugar para o que é bom.” Quando olha para a irmã, “que aos 28 anos é advogada e tem a vida feita”, não deixa de pensar que também ela um dia quer ter “casa própria, emprego, marido, filhos e ser feliz”.
Ana, 30 anos, é arquitecta mas nunca teve um contrato
Ana este Verão teve pela primeira vez férias pagas. Não. Não recebeu subsídio de férias. Simplesmente não deixou de receber o ordenado por tirar 15 dias de descanso. Instabilidade no emprego para quem começa? Nada disso. Ana tem 33 anos e licenciou-se em Arquitectura de Interiores pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa e, depois, em Arquitectura na Lusíada. Antevia um mercado difícil quando entrou na Ordem dos Arquitectos em 2004, mas tinha uma formação dupla. E bastante experiência. Passou por vários ateliers, mesmo antes de ter concluído a primeira licenciatura. Nunca pensou entrar na casa dos 30 sem sequer saber o que é um contrato de trabalho. Só conhece os recibos verdes.
“Não sou caso único, mas sei que não devia ser assim. E o pior é que tenho muita dificuldade em ver-me a trabalhar numa situação diferente desta. É aniquilador e chocante e não há perspectiva de as coisas melhorarem quando a Ordem dos Arquitectos compactua com estas situações”, assegura. Questionada sobre se esta situação não é pouco comum na geração dos 30, responde: “Não é um problema dos jovens que começam a trabalhar. As pessoas com 30 anos há muito tempo que convivem com a precariedade, mas só agora tiveram visibilidade.“Ana não é o seu verdadeiro nome. É o nome de quem já está “escaldado” e que não pode dar a cara. Se o fizesse, acredita que perderia o emprego precário que lhe permite pensar apenas “mês a mês”. E isso não pode acontecer outra vez. Há três anos foi mãe. Estava – uma vez mais – a trabalhar a recibos. Quando teve o bebé nunca mais voltou. A empresa não a readmitiu e ficou sem ordenado. E, com uma filha nos braços, levou tempo a encontrar um novo local compatível com as necessidades de uma jovem mãe.
A situação chocou-a. Mas, garante, há casos piores: “Conheci uma rapariga com cancro da mama que continua a trabalhar por medo de perder o lugar. Trabalhamos anos a fio, mas com os recibos não temos direito a subsídio de desemprego. É uma situação de total desapoio social.” No seu caso, conta com “um apoio muito forte dos pais” e um “marido engenheiro informático” que lhe permitiram ultrapassar a situação.
Sobre o futuro, lamenta que “as pessoas sejam formatadas para a precariedade e para acreditarem que por causa da crise devem deixar de lado os seus direitos”. Ainda assim, espera que um dia as empresas valorizem a sua “experiência e investimento na carreira”. Escolheu ficar em Portugal e “tentar mudar as coisas”. “Há quem queira que sejamos uma geração perdida e resignada. Isolados é difícil organizarmo-nos e ainda mais quando nos fazem sentir medíocres como trabalhadores e quando nunca nos premeiam pelo sucesso. Não podemos esperar pela mudança. Precisamos de a construir.”
Vasco quer deixar de ser um eterno biólogo bolseiro
A seguir a uma bolsa vem… outra bolsa. Vasco Branco tem 28 anos e licenciou-se em Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Seguiu-se o mestrado e, agora, o doutoramento. Não se conforma. Para quem quer fazer investigação, o estatuto de bolseiro é praticamente a única saída, mesmo na área das ciências. E, com ele, vem a instabilidade de quem só pode programar a vida a curto prazo sem contar com prestações como o subsídio de desemprego. Mesmo depois de largos anos a contribuir para instituições públicas.
Acabou o curso em 2003 já com a convicção de que queria fazer investigação na área da biologia marinha. Pagou o mestrado do seu bolso, mas, na parte final da tese sobre contaminação de organismos marinhos com metais pesados, conseguiu a sua primeira bolsa. Antes teve um estágio profissional de nove meses no Instituto de Investigação das Pescas e do Mar. Depois passou, no mesmo local, por um projecto do instituto financiado pela União Europeia. Neste momento está a fazer o seu doutoramento em toxicologia de mercúrio na Faculdade de Farmácia e conta com uma bolsa de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de 980 euros, um valor determinado pelo Estado e que não é revisto para nenhum bolseiro há mais de sete anos e que só é pago 12 meses por ano. E, como os descontos são feitos sobre o valor do ordenado mínimo, a reforma fica, também, comprometida.
E depois do doutoramento? “Até Abril de 2012 a minha bolsa de doutoramento é renovável. E só em Setembro desse ano é que poderei, se tiver sorte, receber uma bolsa de pós-doutoramento. É inevitável questionar de que viverei” Não pensa trabalhar para uma instituição pública? “Nos laboratórios do Estado os quadros estão fechados e restam-me as bolsas. Sempre pensei que fosse uma situação provisória. Mas não é. A minha namorada, por exemplo, é bolseira há oito anos e quando acabar o doutoramento será há 12.“Vasco assegura que mesmo ter uma bolsa para investigar já é “difícil”, pois estão a ser dadas a pessoas que estão a trabalhar como técnicas em laboratórios e que desempenham funções permanentes em nada relacionadas com experiências. Muitos dos seus colegas desistiram ou criaram empresas e até houve um que abriu um consultório de massagem chinesa. Mas Vasco continua a acreditar que “a formação nunca é demais”, apesar de haver “autismo por parte das empresas”. Para lutar contra esta situação, faz parte da direcção da Associação de Bolseiros de Investigação Científica, que pretende dar mais direitos a quem tem “todos os deveres e é muito qualificado”.
“A situação está a tornar-se insustentável. Não quero ser um prémio Nobel e as pessoas têm de perceber que fazer investigação não significa que vamos todos inventar o iPod. O importante é abrir pequenos caminhos. Quando tomam um comprimido é bom que se lembrem que é o produto de muito trabalho de muitas pessoas. E cada vez mais precário”, conclui Vasco.
João foi “salvo” por uma grávida
João Mota foi (temporariamente) salvo por uma grávida. Serão apenas uns meses a fazer paginação numa empresa enquanto a colega estiver de licença. Com 25 anos, o valor que recebe a recibos verdes não chega para conseguir sobreviver. “Desde que acabei o curso foi o melhor que me apareceu e vou tentar subir degrau a degrau até chegar ao patamar que mereço”, conta enquanto caminha em passo apressado para o call center onde também trabalha à noite para conseguir pagar as contas todas.
Já passaram dois anos desde que acabou a licenciatura em Design e Tecnologia das Artes Gráficas no Instituto Politécnico de Tomar. Apanhou a reforma de Bolonha e, por isso, houve mais do que um ano de finalistas, o que duplicou o número de pessoas a sair. “Durante o curso a promessa sempre foi de que teríamos muitas oportunidades e uma óptima taxa de empregabilidade”. Mas não foi assim.
Começou por ter um estágio numa empresa de artes gráficas onde fez de tudo um pouco. Durante os meses que ali passou sentiu-se pouco apoiado e que havia “pouca abertura”. “O Design era uma área em que não havia curso. Senti que me olhavam de lado por ter estudado e que insistiam em fazer tudo como antigamente.” Já na altura conjugou esta experiência com um trabalho de três meses numa loja de roupa onde nem chegou a ter contrato. “Os meus pais estão sempre disponíveis para me ajudar, mas prezo muito a minha independência”, conta.
Se dependesse de João, especializava-se em arte final e em pré-impressão. Já fez formações com este objectivo. E, depois do estágio curricular, conseguiu um estágio profissional de um ano através do programa Inov-Jovem, criado pelo Governo. “A experiência acabou em Outubro, foi óptima e serviu para me especializar. Mas já se sabe que as empresas aproveitam porque pagam menos por alguém qualificado e a seguir não ficam connosco.” Ainda chegaram a dizer que gostavam de o contratar. “Mas veio a crise e disseram que as coisas estavam difíceis. Senti que até agradeciam se as pessoas encontrassem outra coisa e se fossem embora.”
Enquanto substitui a colega vai enviando currículos, mas esbarra na dificuldade de pedirem dois anos de experiência e de só oferecerem estágios não remunerados. “Porque vão pagar se há quem aceite trabalhar de borla”, questiona. Sobre a sua geração, acha que “perdida” é uma expressão “muito forte” e que o problema é que acreditam “que qualquer coisa que apareça é o melhor do mundo e que poderá não haver mais nada”. João não quer desistir e vislumbra um mestrado no estrangeiro como saída para “um dia constituir família e ter vida pessoal”. Um objectivo que tem adiado mas com boa disposição e longe do “desespero e da angústia” de muitos dos seus colegas. “As pessoas quando estão perdidas deixam de lutar e não vou deixar que isso aconteça comigo. Não vou fazer uma cara de funeral só porque estou no desemprego. Há coisas piores, não há?”