Mão-de-obra barata sustenta pesquisa
In Diário de Notícias, 1 de Fevereiro 2003
Os bolseiros de investigação científica vivem dias difíceis. Por isso reúnem-se hoje em Lisboa num encontro nacional para debater problemas, estratégias de organização e soluções. Sem os direitos básicos dos seus colegas de bancada integrados nos centros, laboratórios ou universidades (férias remuneradas, subsídio de doença ou contagem de tempo para a reforma) eles são, no entanto, um dos pilares de sustentação do sistema científico. Trabalham para os seus graus académicos, mas asseguram também uma parte fundamental da rotina da pesquisa no País. E depois de anos sucessivos de bolsas, saem para um mercado de trabalho onde o emprego científico não existe. Nem no sector público, nem nas empresas.
Muitos optam então pelo estrangeiro para continuarem a fazer o que gostam. Outros rendem – se à segurança e aceitam trabalhos para os quais têm qualificações a mais, que não lhes permitem potenciar os conhecimentos. É um duplo desperdício: pessoal e do próprio País, que não tem um sistema científico suficientemente estruturado nem um tecido produtivo à altura dos recursos humanos que forma.
“Neste percurso acabam por perder-se para a investigação algumas das mentes mais brilhantes”, explica Rui Figueira, biólogo, doutorado e em vias de iniciar um contrato temporário num centro de investigação (ver depoimento).
Ninguém sabe ao certo quantos bolseiros há em Portugal. Seis mil? Oito mil? A resposta é uma estranha interrogação. Um número sabe-se: 3723. São as bolsas de formação avançada (mestrados, doutoramentos, pós-doutoramentos, etc.), de candidatura individual, pagas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), organismo do Ministério da Ciência e do Ensino Superior. Este ano, 500 a 600 novas bolsas deste tipo serão atribuídas pela FCT, adiantou ao DN Ramôa Ribeiro, presidente daquele organismo. Mas estas não são as únicas. Há muitas outras bolsas de várias instituições, cujo número se desconhece. E no âmbito dos projectos de investigação financiados pela mesma FCT (cerca de 1500 a decorrer nesta altura) há muitos bolseiros a trabalhar. Mas o seu total é uma incógnita. “Esta é uma contabilidade muito difícil de fazer”, garante Ramôa Ribeiro.
Há quem diga que esse número é idêntico ao dos que são pagos directamente pela FCT, atirando para a fasquia dos oito mil o total destes jovens portugueses. “É muito importante ter o conhecimento exacto desta realidade”, diz João Ferreira, da Plataforma dos Bolseiros de Investigação Científica (constituída no final de 2001), que promove o encontro de hoje.
O presidente da FCT admite “que estes jovens devem constituir metade dos recursos humanos do sistema científico”, mas os membros da plataforma acreditam que esta é uma estimativa por baixo. “Parece-nos que esta população assegura o fundamental da rotina da investigação em Portugal”, afirma João Ferreira.
Ideia semelhante tem Margarida Vigário, bolseira de pós-doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência. “Nas ciências da saúde, mais de 50 por cento dos que nos últimos anos têm assinado artigos científicos em revistas internacionais, integrados em equipas, são bolseiros”, garante.
“As bolsas servem para obter graus académicos. Depois é preferível ter contratos de trabalho, mesmo que temporários. De outra forma, somos sobretudo mão de obra barata”, diz Rui Figueira.
Ramôa Ribeiro, a quem a plataforma apresentou o seu caderno reivindicativo em Setembro, aceita que “algumas coisas têm que mudar”. Até porque, “apesar do esforço dos últimos anos, os números mostram que continuamos na cauda da Europa e que é preciso continuar a apostar na formação especializada”, sublinha o presidente da FCT.
O que tem que mudar, na sua opinião, atravessa todos os sectores. “Era importante que as universidades pudessem abrir um lugar por ano, o que não está a acontecer”, diz. Quantos aos Laboratórios de Estado, cujos quadros estão envelhecidos e desajustados das necessidades contemporâneas “têm que se renovar”. No sector privado, a mudança é ainda mais urgente. “As empresas precisam de fazer um grande esforço de inserção destas pessoas altamente qualificados, para actividades de inovação e investigação”. Aos jovens, Ramôa Ribeiro aconselha flexibilidade, para encararem a hipótese de integração em universidades do interior, e iniciativa para criação das suas próprias empresas. Um programa (o NEST) foi criado recentemente para apoiar a criação destas empresas, mas ainda é cedo para fazer balanços.
O “pacote” está afinal ligado a uma profunda mudança de instituições e mentalidades. Para o País, pode ser a diferença entre desenvolvimento e estagnação. Quanto aos jovens, a maioria, provavelmente, não pode esperar. Muitos já estão na casa dos 30.